23 de fevereiro de 2013
Simbiose Mantida para o Desenvolvimento da Ciência. (Parte II)
Dando sequência, então, à exposição pretendida sobre o “último romano e o primeiro escolástico” observe-se, em complementação, que tendo Boécio estudado por muitos anos em Atenas (na Academia, fechada por Justiniano em 529) as ciências, a literatura e a filosofia gregas, este adquiriu um profundo conhecimento da cultura clássica. Em meio à barbárie dominante, Boécio realizou (até certo ponto e na medida do possível) tanto a salvação quanto a transmissão da cultura antiga para os novos ocupantes do Ocidente; e nisto consiste, talvez, a maior e melhor contribuição de Boécio para o futuro.
Devido à aguda visão de Boécio, este percebeu a gravidade do momento histórico de sua época e, muito provavelmente, sem a sua intervenção poderia ter ocorrido um total desaparecimento da cultura que tivera suas origens na Grécia e em Roma e que modelara o Ocidente.
Assim, quando Boécio volta à Itália, passa a utilizar sua influência, originada pelos cargos que lhe são confiados pelo rei Teodorico, para, efetivamente, exercer sua importante tarefa pedagógica; qual seja: “transmitir o saber clássico aos bárbaros”.
Pode parecer, de forma equivocada, que o trabalho pedagógico de Boécio (um homem culto, educado na Grécia, vivendo em meio a bárbaros, um católico em meio a arianos, e, acima de tudo, um romano em meio a ostrogodos) encerra pouca importância. Contudo, embora, em muitas das vezes, o trabalho de Boécio de selecionar, traduzir e resumir parte da cultura da Antigüidade seja classificado como “simples, discreto e pouco original”, reveste-se o mesmo de extraordinária importância para o futuro, dado que a matemática e a filosofia preservaram-se (é certo que precariamente) no Ocidente e mantiveram-se até que, séculos depois, puderam atingir revigorado impulso, passando a desenvolver-se mais e mais.
Acrescente-se, também, que Boécio (homem de ideais elevados e de integridade rígida) tinha a ambição de traduzir todas as obras de Platão (428/427 a.C - 348/347 a.C) e de Aristóteles; contudo, um tal projeto foi interrompido por sua trágica morte. A maioria dos comentadores são de opinião que Boécio já teria garantido um lugar de destaque na história somente com seu trabalho de tradutor e comentarista. Boécio, “o primeiro escolástico”, estabeleceu a ponte entre a cultura grega antiga e a Idade Média e foi o fundador da Escolástica. Durante séculos nada se conheceu no Ocidente sobre Aristóteles ou sobre a geometria a não ser o “pouco” que Boécio traduziu, comentou ou produziu.
É de se ressaltar, ainda, quanto à preocupação de Boécio com o desaparecimento do esplendor da cultura grega, a sentença que se encontra no começo do livro II do Ars Geometriae (obra onde se resume em opúsculo a geometria de Euclides), qual seja: “apesar de expressos de maneira resumida, pelo menos estão aqui reafirmados”, ou em outra tradução: “apresentei-vos a Geometria de modo sucinto e facilitado, mas a apresentei”. Uma tal sentença bem pode sintetizar todo o projeto de salvação cultural boeciano:
É, também, interessante ressaltar a curiosa passagem do Ars Geometriae onde Boécio pede “licença” aos seus leitores (ostrogodos) para fazer demonstrações de teoremas a fim de que estes não permanecessem na mais total ignorância: “que se saiba pelo menos o que é demonstrar um teorema e que isso é belo, importante e formativo”. Para tanto, demonstrou apenas três: as três primeiras proposições do livro I de Euclides. E, também, nesta atitude são preservadas as sementes que algum dia haveriam de germinar.
A importância de Boécio na história da matemática está, portanto, mais no fato de seus livros de geometria e aritmética terem sido adotados, por muitos séculos, nas escolas monásticas, do que por conter contribuições efetivas ao edifício matemático. Embora fracos, esses trabalhos acabaram se constituindo no sumo do conhecimento matemático, o que ilustra, também, bem o quanto o conhecimento matemático se tornou “insignificante” na Baixa Idade Média.
A Geometria de Boécio (em tradução latina), como precedentemente observado, se resume nos enunciados das proposições do Livro I e em poucas proposições escolhidas dos Livros III e IV dos Os Elementos de Euclides, juntamente com algumas aplicações à mensuração. A sua Aritmética se baseava na de Nicômaco, escrita quatro séculos antes, um trabalho enfadonho e meio místico, embora tivesse desfrutado de alto prestígio. Contudo, cabe insistir: graças a esses trabalhos elementares a matemática preservou-se no ocidente e pôde manter-se até o século X, quando recebe novo impulso e, a partir dos séculos seguintes, desenvolve-se de forma surpreendente.
Acrescente, a propósito, que a Introdução à aritmética de Nicômaco, que serviu de modelo para imitadores e comentadores, não era nem um tratado sobre computações nem sobre álgebra, mas, claramente, um manual dos elementos de matemática essenciais à compreensão da filosofia pitagórica e platônica. Entre aqueles que se fundamentaram na referida obra os mais conhecidos foram Teon de Smirna (viveu por volta de 125), que escreveu sua Exposito em grego e o próprio Boécio, que escreveu sua Aritmética muito depois em latim. A Expositio trata de uma exposição de questões matemáticas úteis à compreensão de Platão e, por sua vez, a Aritmética de Boécio nada tem de original (enquanto obra matemática); é, na verdade, quase uma tradução da obra mais antiga de Nicômaco.
É sempre oportuno lembrar, todavia, que na Grécia antiga a palavra aritmética significava “teoria dos números”, não “computação” (infelizmente). Acrescente que a aritmética grega tinha mais em comum com a filosofia que com o que, atualmente, chamamos de matemática. Porém a aritmética grega teve, em conseqüência, importante papel no neoplatonismo durante a Segunda Idade Alexandrina.
Apresentadas as resumidas observações anteriores sobre o propósito pedagógico de Boécio, reporte-se, entretanto e especificamente, às contribuições de Boécio à matemática; onde, em particular, leva-se em conta alguns pontos sobre a função de Boécio quanto às origens do Sistema Decimal de Numeração. Mas, tais considerações serão apresentadas, em breve, em uma próxima postagem neste espaço.
Carlos Magno Corrêa Dias
23/02/2013