9 de fevereiro de 2013

Simbiose Mantida para o Desenvolvimento da Ciência.


Partindo da convicção que Boécio (c. 480 - 525/26), Fibonacci (c. 1180 - 1250) e Regiomontano (1436 - 1476) são os três medievais que bem podem constituir uma tríade representativa da ciência (em geral) e da matemática (em particular) na Idade Média, no presente artigo é pretendido evidenciar, de forma estrita, a importância do primeiro dentre os três atores históricos como o “último romano e o primeiro escolástico” a manter a necessária simbiose entre as correspondentes eras para assegurar a continuidade do conhecimento científico.

Partindo-se do artigo “Boécio - Fibonacci - Regiomontano: Uma Tríade Representativa da Matemática na Idade Média”, que elaborei e publiquei há algum tempo passado, saliento que as ponderações sobre a “unidade trinária”, anteriormente considerada, é substituída, neste arrazoado, por uma exposição centrada em observações apenas sobre o primeiro daqueles medievais; mantendo-se, porém, a posição já defendida.

Como sempre salvaguardado, há de se salientar, uma vez mais, preliminarmente, que para o entendimento do desenvolvimento dos feitos da humanidade, ou para a distinção (avaliação) da evolução da cultura das civilizações, não devem ser considerados tão somente os fatores ligados a recursos técnicos ou a avanços na realidade física, mas, também, e principalmente, é aconselhável compreender (ou perceber) a mentalidade dos homens de cada período da história que promoveram eventuais transformações. E, neste sentido, os medievais se distinguiram notavelmente.

De forma geral, a “experiência” medieval salvou a cultura antiga. E é, justamente, devido ao trabalho de aprendizado elementar inserido na pedagogia medieval que atualmente, certamente, temos garantido diversos dos progressos e inovações mais espetaculares. O trabalho de preservação, de salvação da cultura antiga, desenvolvido por educadores medievais, acima de quaisquer outros pontos, conservou as sementes dos grandes progressos futuros. E, dentre estes educadores temos a ressaltar a figura brilhante de Boécio; sem o qual, muito provavelmente, a maior parte do conhecimento se teria perdido irremediavelmente.

Até o final do século XI verifica-se que os povos cristãos encontravam-se na maior desordem política, na recessão econômica, na falta de perspectivas e na ausência de progresso intelectual ou material. A Europa demorou muito a se recuperar da queda do império romano e das invasões bárbaras. O conhecimento científico era elementar, para não dizer inexistente. O ensino da “aritmética teórica” tinha sua principal fonte em trabalhos inspirados amplamente na Introductio arithmeticae, uma obra matemática de pouca qualidade e originalidade atribuída ao grego Nicômaco de Gerasa (c. 60 - c. 120), um neopitagórico que viveu não longe de Jerusalém. Porém, a aritmética prática consistia essencialmente no uso da numeração arcaica do povo romano tanto no modo de contar com os dedos quanto na prática de operações através de pedras ou de fichas nos velhos ábacos (também proveniente dos romanos).

Nesta escuridão quase total, por que considerar a importância de Boécio no desenvolvimento da ciência ou da matemática se a sua aritmética era aquela baseada na fraca obra de Nicômaco e a sua geometria continha nada mais que os enunciados do Livro I de Euclides (360 a.C - 295 a.C), com algumas proposições dos Livros III e IV, muitas aplicações numéricas relativas à simples determinação de áreas e alguns outros poucos assuntos? Muito simples. Os textos matemáticos do diplomata e filósofo Anício Mânlio Torquato Severino Boécio, que nasceu em Roma, discípulo da escola de Atenas, neoplatônico (pelo menos), descendente das nobres famílias dos Anícios e dos Torquatos, notoriamente versado na literatura e na ciência gregas, constituíram a fonte de autoridade no mundo ocidental durante mais de um milhar de anos. Por intermédio das obras matemáticas de Boécio a Europa medieval, ao passo que tomava conhecimento da vida intelectual do mundo antigo, aprendia tanto a geometria como a aritmética.

Além do mais, tais textos refletem as condições culturais da correspondente época. São de conteúdo elementar (no sentido estrito da palavra) e a sua própria sobrevivência, é provável, pode ter sido influenciada pela crença de que o autor morrera como mártir da fé católica. Boécio foi chamado “o último romano, o primeiro escolástico”. Cônsul de Teodorico (454 - 526), rei dos ostrogodos, Boécio foi assassinado sob a acusação de magia e de conspiração. Boécio é considerado um cristão e um “mártir da fé”.

Pondere-se que Boécio mesmo tendo sido muito estimado de Teodorico (que em 493 expulsara os hérulos de Itália) e tendo sido eleito cônsul, ainda muito jovem, foi um defensor acérrimo dos direitos dos camponeses contra os roubos e depredações dos funcionários públicos. Tal atitude lhe acarretou a acusação de conspirar juntamente com o imperador Justiniano (483 - 565) do oriente para libertar Roma do jugo do invasor. Condenado à morte, Boécio foi torturado no batistério da Igreja de Ticínio, sofrendo horrível suplício.

Enfatize-se, uma vez mais, que sob o ponto de vista estritamente matemático, tanto a Aritmética como a Ars Geometriae de Boécio são livros de pouco valor. Porém, durante vários séculos constituíram a base de todo o ensino matemático nas escolas das catedrais e dos conventos da Europa Ocidental. As obras matemáticas de Boécio, juntamente com os livros do romano Cassiodoro (490 - 566) e de Isidoro (570-636), bispo de Sevilha, foram consagrados ao quadrivium matemático (aritmética, geometria, música e astronomia), tendo sido consideradas obras modelo.

As obras de Boécio podem ser divididas em três grupos: no primeiro grupo, tem-se uma coleção de trabalhos relacionados com as artes liberais. Tem-se, então, traduções de Aristóteles (384 a.C - 322 a.C) tais como Categorias, De Interpretatione, Primeiros e Segundos Analíticos, Argumentos sofísticos; comentários sobre Isagoge de Porfírio, as Categorias e De Interpretatione de Aristóteles, os Tópicos de Cícero, bem como, composições mais ou menos pessoais (Tratados de Lógica, De Arithmetica, De Musica).

No que concerne ao segundo grupo de tais obras distinguem-se cinco opúsculos teológicos (Contra Eutíquio e Nestório, A fé católica, Da Trindade, Os sete problemas (De hebdomadibus), Se o Pai, o Filho e o Espírito Santo são predicados da deidade segundo a substância?). Tais opúsculos haverão de desfrutar, em meio aos mestres de teologia, grande crédito e prestígio.

Contudo, foi na prisão que Boécio escreveu sua obra mais notável, a Consolidação da Filosofia. Esse ensaio, escrito em prosa e verso, alternados, foi elaborado enquanto, na prisão, esperava a morte. Em tal trabalho Boécio discute a responsabilidade moral à luz da filosofia aristotélica e platônica. A Consolidação da Filosofia, do século IX ao século XV, foi uma das obras mais apreciadas e mais freqüentemente comentadas, fornecendo, por sua conta, inspiração e apoio a muitas gerações de filósofos.

Os livros citados e grande número de obras dos filósofos gregos que Boécio traduziu, deram, na Idade Média, grande fama ao célebre romano, notoriedade que, a partir do século XIII, com a aparição de outros autores mais notáveis, foi-se, contudo, extinguindo pouco a pouco, ficando Boécio conhecido, principalmente, pela sua Consolidação da Filosofia, que Alfredo (849 - 901), o Grande, o mais ilustre dos reis anglo-saxões, que fundou a Universidade de Oxford, fez traduzir.

Deixando de lado, porém, tudo quanto o romano Boécio tenha escrito sobre outros temas, concentre-se em ressaltar, por um lado, a sua tarefa pedagógica e, por outro, as suas particulares contribuições à matemática. Contudo, tais considerações serão apresentadas, em específico, em uma próxima postagem, brevemente.

Carlos Magno Corrêa Dias
09/02/2013